A RUA COMO ESPAÇO DE DISPUTA POLÍTICA EM ANGOLA: ENTRE A REIVINDICAÇÃO POPULAR E A REPRESSÃO ESTATAL
Oliveira Anestesia
Mateus Kassendje Tchimuco Ngalangue
As manifestações que ocuparam as ruas de Luanda a partir de 1º de julho de 2025 — intensificando-se nos dias 29 e 30 do mesmo mês — não constituem um episódio isolado na trajetória política de Angola. Ao contrário, integram um processo histórico contínuo em que o espaço público se consolida como arena central de disputa política. O protagonismo das ruas evidencia o esgotamento dos apelos — por parte da sociedade civil e de setores da oposição — por respeito à Constituição e pela efetivação de direitos sociais, econômicos e políticos. Frente à fragilidade ou inoperância dos canais institucionais de participação, a rua emerge como espaço privilegiado tanto para a expressão da insatisfação popular quanto para a reafirmação do controle estatal, configurando-se como forma de oposição extrainstitucional que desafia os limites do Parlamento.
O Estado de Direito Democrático pressupõe a articulação entre direitos fundamentais, democracia e separação de poderes. Embora Angola se autodeclare um Estado democrático de direito desde os anos 1990, o partido-Estado e suas lideranças têm reiterado práticas autoritárias, sustentadas por um modelo de governação marcado pelo clientelismo, pela corrupção estrutural, pela centralização excessiva do poder e por sucessivas violações constitucionais. A Presidência da República tornou-se o núcleo de um sistema neopatrimonialista, onde cargos e benefícios são distribuídos com base na lealdade pessoal ao Presidente e ao partido governante — incluindo deputados, ministros, governadores, administradores municipais, oficiais militares, magistrados e membros do Conselho da República. Parte da sociedade civil — incluindo organizações não governamentais e partidos de oposição financiados pelo Estado — passou, de forma tácita ou explícita, a integrar os mecanismos de reprodução do status quo, contribuindo para a manutenção da ordem vigente (Chabal, 2006).
Em oposição a essa estrutura, que perdura desde o longo governo de José Eduardo dos Santos (1979–2017) até a atual gestão de João Lourenço, as ruas têm se afirmado como espaço recorrente de reivindicação e resistência sociopolítica. Esses episódios são, com frequência, marcados por confrontos com as forças de segurança, que atuam como linha de contenção do regime. Os protestos recentes, portanto, não representam uma ruptura, mas sim a continuidade — e, em certos aspectos, o agravamento — de um padrão histórico de tensão entre a luta por direitos e a repressão governamental.
A faísca mais recente desse processo foi o aumento do preço do gasóleo de 300 para 400 kwanzas por litro, como parte da política de retirada gradual dos subsídios estatais. Longe de ser uma medida meramente técnica ou ditada exclusivamente por exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI), essa decisão simboliza a persistência de um modelo autoritário e excludente, que ignora os canais de escuta social e impõe políticas de forte impacto regressivo, sobretudo sobre os setores mais vulneráveis da população. Ao adotar medidas impopulares sem diálogo e negligenciar os mecanismos participativos, o Estado contribui para o aprofundamento das desigualdades e reforça a rua como o único espaço viável de exercício da cidadania.
Nesse contexto, a Associação dos Taxistas de Angola (ATA), diretamente impactada pelo reajuste, convocou uma paralisação nacional entre os dias 28 e 30 de julho. O lema “Fiquem em casa, mantenham as vossas viaturas no parque por forma a mostrarmos o nosso descontentamento” sintetizou não apenas o repúdio à nova política de preços, mas também a denúncia de problemas estruturais historicamente enfrentados pela categoria: ausência de regulamentação profissional, escassez de pontos de paragem legalizados, extorsão e violência policial e inexistência de canais efetivos de diálogo com o Estado. A rua foi, assim, ressignificada como espaço de denúncia, resistência e visibilidade política para grupos historicamente marginalizados pelas políticas públicas.
A essas ações somou-se o “Movimento Contra a Subida do Combustível”, que mobilizou centenas de cidadãos ao longo do mês em Luanda. Suas reivindicações extrapolaram o debate sobre o preço dos combustíveis, abarcando pautas mais amplas como justiça social, redução do custo de vida, libertação de ativistas como Osvaldo Caholo e Gonçalves Frederico — presos sob acusação de incitação à violência e apologia ao crime — e a exigência por uma real abertura democrática. Essas manifestações expressam o acúmulo de um mal-estar social alimentado por décadas de promessas não cumpridas e pela exclusão sistemática da população dos processos decisórios.
Parte dessas mobilizações, no entanto, resultou em confrontos com a Polícia Nacional, episódios de vandalismo, saques e tentativas de invasão a estabelecimentos comerciais. Embora condenáveis, tais atos revelam o desespero de uma juventude que, após anos de espera por melhores condições de vida, vê suas esperanças se esvaírem. São jovens que clamam por educação, emprego, alimentação e oportunidades para viver com dignidade.
A resposta do Estado, no entanto, foi marcada pela intensificação da repressão. O uso desproporcional da força resultou em 22 mortos, 197 feridos e mais de 1.200 detenções, configurando um cenário de graves violações de direitos humanos. A rua, espaço que deveria ser legítimo para a expressão democrática, foi transformada em território de criminalização da dissidência — reafirmando a lógica de um Estado que encara o exercício do direito constitucional à manifestação (artigo 47 da Constituição) como ameaça à sua autoridade.
Esse contexto revela o que Achille Mbembe (2020) conceitua como necropolítica: o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Trata-se de uma lógica profundamente enraizada em Angola, onde o partido-Estado instituiu mecanismos sistemáticos de gestão da violência e distribuição seletiva da vulnerabilidade. Mesmo fora dos contextos de protesto, morre-se em Angola: de fome, de miséria, de paludismo, em acidentes rodoviários ou no silêncio da marginalização. Morrem os mussequeiros, zungueiras, mototaxistas, jovens periféricos, catadores de lixo, famílias que se alimentam do que sobra nos contentores dos bairros nobres — e morre-se, sobretudo, por ousar falar de política de forma crítica.
Frente à necropolítica, a disputa política transcende os confrontos visíveis, os cartazes e a ocupação física das ruas. Ela também se manifesta por meio da infrapolítica dos grupos oprimidos (Scott, 2013): um conjunto de práticas silenciosas, mas persistentes, que minam a legitimidade do poder dominante. Perante a repressão, perseguições, ameaças, detenções arbitrárias e até assassinatos, os movimentos sociais têm recorrido ao anonimato, ao exílio, às redes sociais, à cultura Hip-Hop (especialmente a vertente underground), aos panelaços, boicotes informais, recusas tácitas à autoridade, trabalho deliberadamente malfeito, disseminação de rumores e discursos ocultos. Esses gestos — embora aparentemente pequenos — são formas eficazes de resistência num contexto autoritário. Nesse processo, como bem destaca Michel de Certeau (2014), torna-se fundamental que os movimentos sociais compreendam a distinção entre estratégias — operadas por instituições e estruturas de poder — e táticas — ações cotidianas e improvisadas dos sujeitos que resistem ao controle. São pequenos atos de subversão, muitas vezes invisíveis, que personalizam os ambientes e objetos, criando micropolíticas do dia a dia. Essa dimensão tática da resistência torna o espaço urbano — e, sobretudo, a rua — não apenas um campo de disputa simbólica, mas um território real de reapropriação da vida social e política.
Os protestos de julho de 2025, portanto, devem ser compreendidos como parte de uma constelação mais ampla de resistências — visíveis e invisíveis — que disputam o futuro de Angola. Mais do que uma reação pontual ao aumento dos combustíveis, essas manifestações expressam o esgotamento de uma ordem social alicerçada na injustiça, precariedade e exclusão. Para que essas vozes tenham impacto político real, é necessário mais do que amplificá-las nas ruas: é preciso reconhecê-las, organizá-las e traduzi-las em um projeto consistente de transformação social, política e institucional — capaz de disputar, com legitimidade, não apenas o presente, mas também o futuro do país.